o MeU eU e Os OuTrOs EuS (eL mEu Jo I eLs AlTrEs JoS)

abril 29, 2009

"Lá fora ouvem-se os gritos embriagados dos grupos de sexta à noite que na peregrinação pelos bares e discotecas de moda, enganam o frio e dão vida à cidade. Aqui dentro apenas sinto o borbulhar da cafeteira e uma profunda desilusão."

Assim escrevia enquanto se perdia no silêncio da noite. Encontrava-se no mesmo túnel de sempre. Um túnel sem saída, sem qualquer luz ao fundo. Sentia que a cada minuto que passava se desvanecia toda e qualquer esperança que tinha guardado ao longo dos últimos meses. Estava perdido. Sem rumo. Esta era a realidade e o melhor seria enfrentá-la.

Os olhos marejados de lágrimas, que já não conseguia conter, denunciavam o estado em que se encontrava. Olhava-se agora ao espelho. Para onde haviam fugido o sorriso desconcertante e a famosa joie de vivre que o caracterizavam? Será que eram, afinal de contas, instrumentos inventados para construir a sua própria máscara social?

Não o sabia. O único que podia afirmar era que, definitivamente, algo mudara . De há uns tempos para cá, sentia-se deprimido, insatisfeito e como dizia uma das suas ex espanholas: "sin ganas de hacer sea lo que sea."

Utilizando a imagem da primeira psicóloga que o tinha consultado, era como se estivesse "no início de uma espiral que o levaria ao abismo". Sim, Ismael não consultara apenas uma, mas duas psicólogas e um psiquiatra. Da segunda, nem valia a pena falar, recusou-se a tratá-lo "por questões pessoais", recomendando-o a um psiquiatra seu conhecido. Quanto a este último, assustado com as deambulações depressivas do paciente, não hesitou em considerar que "perante um quadro clínico desta gravidade, o melhor seria um internamento imediato em prol da integridade fisíca". Escusado será dizer que não lhe voltou a posar os olhos em cima. Se havia algum lugar de onde Ismael fugia a sete pés era precisamente de um hospital. Afinal, não estava doente, mas sim cansado. Cansado de tudo e de todos.

Os passeios pela praia, as leituras no cimo da montanha, as aulas de guitarra e até o novo curso de árabe deixaram de suscitar-lhe qualquer tipo de interesse. Começou por fechar-se em casa depois do trabalho e a abandonar as habituais saídas e jantares com os amigos. No início ainda lhe ligavam, mas com o passar do tempo desistiram de convidá-lo e esqueceram-se que um dia houvera mais um no grupo de sempre.
Por outro lado, necessitava estar só e por mais que o quisesse explicar, a verdade é que não encontrava qualquer tipo de justificação. E, ainda que se lho ocorresse porque teria que justificá-lo? Em causa estava o seu tempo e cada um tem o direito de ocupá-lo como bem entender. Ainda que seja não fazendo absolutamente nada.

Ismael chegara a uma encruzilhada em que não se podia deixar arrastar pelas marés. Tinha que tomar as rédeas da sua vida. Assumir um papel activo neste cruzeiro. Deixar de ser um simples grumete e aceitar a promoção forçada a comandante. Caso optasse por não o fazer, tinha o naufrágio como certo. E, não estando seguro do que realmente pretendia, o melhor seria não deixar o seu destino nas mãos de terceiros.

Após passar a noite sem dormir, dando voltas e mais voltas e engendrando mil e uma estratégias, resolveu que apenas tinha um caminho a seguir. Deixar tudo o que o aprisionava àquela sensação de desespero e buscar novos horizontes. E quando se referia a buscar novos horizontes, dizia-o literalmente. A primeira coisa que faria seria deslocar-se ao banco para levantar todo o dinheiro que poupara ao longo da sua vida cinzenta e, de seguida, comprar uma passagem sem regresso previsto. O primeiro destino seria a cidade que desde pequeno povoara o seu imaginário. A cidade donde partira o grande Marco Polo. A Sereníssima. (continua)